Justiça
Um erro primário do STF virá à tona. E
surgirá oportunidade de debater o financiamento empresarial dos
partidos, principal mecanismo de corrupção política no Brasil
por Antonio Martins —
Se o voto do ministro Celso de Mello
encerrar, nesta quarta-feira, o julgamento do chamado “mensalão” pelo
Supremo Tribunal Federal (STF), milhões de brasileiros irão sentir-se
aliviados e engrandecidos. Tendo acompanhado o episódio, durante oito
anos, por meio dos jornais e da TV, eles acreditarão que haverá surgido, enfim,
um caso em que o desvio de verbas públicas não ficará impune. Certas
circunstâncias ampliariam seu júbilo. Entre os condenados, haveriam “peixes
graúdos”. Não seria poupado o PT, partido no governo há dez anos. E,
glória máxima, parte dos réus iria para a cadeia – o símbolo maior e mais
humilhante dos sistemas punitivos modernos. Ficaria aberto caminho,
pensariam estes milhões, para moralizar a vida política e resgatar a
República.
Seria um erro trágico, por dois motivos. Do ponto de vista factual, surgiram, nos últimos meses, sinais concretos de que o chamado “mensalão” não envolveu
desvio de recursos públicos. O ministro Joaquim Barbosa, relator do
processo e hoje presidente do STF, ignorou estes sinais; teme que este
erro primário torne-se claro; é, também por isso, um opositor ferrenho
da reabertura do caso.
Mas o engano principal seria político.
O encerramento do processo, no pé em que está, evitará que a sociedade
debata a corrupção da vida política por meio do dinheiro oferecido pelas
empresas aos partidos e a suas campanhas eleitorais. Este é, de longe, o
principal mecanismo para submeter as decisões políticas ao poder
econômico, e para promover o enriquecimento ilícito de ocupantes de
cargos públicos. Está exposto, em detalhes, no episódio do “mensalão”.
Encarcerar José Dirceu e seus colegas, e não examiná-lo, satisfará o
ímpeto punitivo com que alguns julgam possível enfrentar a corrução. Mas
varrerá para debaixo do tapete o motor que a impulsiona.
Gilmar Mendes e Pizzolato
A derrubada do mito segundo o qual o
“mensalão” envolveu apropriação e desvio de recursos públicos é obra de
um mestre: o jornalista Raimundo Rodrigues Pereira, que dirigiu, nos
anos 1970 e 80 algumas das principais publicações da imprensa de
resistência à ditadura1. Hoje, toca a revista Retrato do Brasil, Lá, ele
e a repórter Lia Imanishi, escrevem, desde fevereiro de 2012, uma série
de reportagens investigativas sobre o julgamento, pelo STF, da Ação
Penal 470 (AP-470) – a que examina o “mensalão”. Seu trabalho estende-se
por ao menos nove edições regulares da revista [1 2 3 4 5 6 7 8 9], um número especial e um livro.
Os textos expõe em detalhes como dois Procuradores-Gerais da República e
o diversos ministros do Supremo, a começar por Joaquim Barbosa,
passaram por cima dos fatos e construíram, para o episódio, a versão que
mais interessava à mídia, à opinião pública conservadora e... ao
próprio sistema político.
Denunciado pelo ex-deputado Roberto
Jefferson (PTB-RJ) em junho de 2005, o “mensalão” chegou à
Procuradoria-Geral (PGR) e ao STF um mês depois. Alguns fatos muito
graves eram conhecidos, mostram as reportagens. No início do governo
Lula, a direção nacional do PT repassou, por orientação de seu
tesoureiro, Delúbio Soares, e com apoio do publicitário Marcos Valério,
cerca de R$ 55,3 milhões a políticos de cinco partidos: o próprio PT,
PL, PP, PMDB e PTB. Os pagamentos foram feitos por meio do chamado
“valerioduto” – um esquema que incluía os bancos Rural e BMG, mais a
agência de publicidade de Valério e empresas de seus sócios. Além disso,
desde agosto daquele ano Delúbio admitiu que
cometera crimes eleitorais: arrecadação de fundos junto a empresas sem
contabilização (“caixa 2”); distribuição de somas a correligionários e
aliados, também “por fora”.
No entanto, mostra o Retrato do Brasil, os
procuradores-gerais Antonio Fernando de Souza (que atuou no caso até o
final de seu mandato, em junho de 2009) e seu sucessor, Roberto Gurgel,
omitiram-se da investigação deste delito. Estavam empenhados em
argumentar que a admissão do “caixa 2” era mera estratégia para ocultar
outro crime. Os dirigentes PT, no governo federal, teriam abastecido o
partido e as agremiações aliadas com recursos desviados do Estado.
Formular hipóteses é parte das atribuições
do procurador-geral, responsável por comandar inquéritos. Mas nem
Antonio Fernando de Souza, nem Roberto Gurgel preocuparam-se com os
passos posteriores indispensáveis: investigar; demonstrar a suposição;
reunir provas. Ao denunciar ao STF, em abril de 2006, quarenta pessoas
envolvidas no episódio, o primeiro assegurou que houvera desvio
de recursos públicos. À falta de provas, serviu-se de um atalho.
Henrique Pizzolato, diretor de marketing do Banco do Brasil (BB) à época
dos fatos, figurava ao mesmo tempo em duas pontas do inquérito. Ele
havia recebido, por meio do valerioduto, R$ 326 mil. E, na condição de
dirigente do BB, autorizara o pagamento de R$ 72,8 milhões à DNA,
agência de publicidade de Marcos Valério. Isso bastou para que o
procurador juntasse as pontas. A origem primeira do dinheiro repassado
ao PT e aliados seria o Banco do Brasil. Pizzolato desviara os R$ 72,8
milhões da instituição que ajudava a dirigir; como recompensa, recebera
suborno de R$ 326 mil.
A “demonstração” foi aceita e repetida
acriticamente (e à exaustão), nos últimos sete anos – a começar pelo
sucessor de Souza e pela maioria dos ministros do STF. Num de seus
textos, Raimundo Pereira descreve,
com humor, o discurso empolado que o ministro Gilmar Mendes proferiu na
sessão do tribunal, transmitida ao vivo pela TV, em 29/8/12. Está no YouTube.
Voz empostada, gestos teatrais, Mendes indigna-se: “O que fizeram com o
Ban-co-do-Bra-sil?” E prossegue: “Em operações singelas, se tiram desta
instituição 73 milhões, sabendo que não era para fazer serviço algum.
[…] Eu fico a imaginar […] como nós descemos na escala das
de-gra-da-ções”. Três semanas antes, ao apresentar sua acusação, no
plenário do Supremo, o procurar-geral Roberto Gurgel, assegurara: “Foi
sem dúvida o mais atrevido e escandaloso caso de corrupção e desvio de
dinheiro público realizado no Brasil".
Em nenhum momento, Pizzolato admitiu as
acusações que lhe foram feitas. Os R$ 326 mil recebidos via valerioduto,
sustentou, foram para o PT. Todos os pagamentos do BB à DNA
correspondiam a serviços efetivamente prestados pela agência. Conforme
reza um princípio elementar do Direito, cabia aos que o acusavam provar
sua culpa.
Poucos sabem, mas o princípio básico da
presunção de inocência não foi respeitado, no julgamento da AP-470. O
STF considerou que, sendo os réus pessoas “muito poderosas”, e tendo
eles supostamente formado uma quadrilha para apagar as marcas de seus
crimes, era possível condená-los com base em indícios consistentes.
Pizzolato, por exemplo, foi condenado por unanimidade, em três das
acusações que enfrentou e, por 11 votos contra um, numa quarta. Devido à
ampla diferença de votos, não poderá beneficiar-se do direito a
apresentar “embargos infringentes”, mesmo que o ministro Celso de Mello
considere-os legítimos. Sua pena está fixada em 12 anos e 7 meses de
prisão mais multa em torno de R$ 1,3 milhão.
A partir de outubro, no entanto, restou-lhe um alento moral. As reportagens de Retrato do Brasil refizeram
a trilha de seus argumentos e comprovaram sua veracidade. O STF não
permite a Pizzolato reivindicar sua presunção de inocência, mas Raimundo
Pereira e Lia Imanishi estão conseguindo comprovar que
ele não é culpado do que lhe atribui o Supremo. A partir dos próprios
autos do processo, flagrantemente ignorados por dois procuradores-gerais
e diversos ministros do Supremo, levantaram 99 notas fiscais que
comprovam: os R$ 72,8 milhões pagos à DNA referem-se a promoções e
eventos reais, que ocorreram às vistas de milhares ou milhões de
brasileiros e têm documentação fiscal regular.
Se estivessem interessados em cumprir sua
função constitucional, e não em condenar de antemão, os procuradores e
ministros poderiam ter chegado às mesmas conclusões dos repórteres. Verificariam
que os recursos pagos pelo BB à DNA não “tiraram da instituição 73
milhões, sabendo que não era para fazer serviço algum”. Custearam
eventos patrocinados pelo cartão de crédito do banco (bandeira Visa), ou
promoções para divulgá-lo. Entre elas, o Réveillon do Rio de Janeiro; o
Círio de Nazaré, em Belém; o Festival de Inverno de Campos do Jordão; a
exposição de cultura africana Projeto África, no Centro Cultural do
banco no Rio de Janeiro; a publicidade do BB nos biquínis, sutiãs e
bandanas das campeãs mundiais de vôlei de praia, Shelda e Adriana;
dezenas de peças publicitárias veiculadas pela Rede Globo...
As descobertas de Raimundo e Lia, que
desmentem os vereditos do STF, foram feitas em outubro do ano passado e
têm sido apresentadas, desde então, com profundidade e detalhes cada vez
maiores, nas sucessivas edições do Retrato do Brasil. Foram tema
central de debates e atos de protesto contra a forma como se deu o
julgamento do “Mensalão”. Até agora, não foram contestadas por nenhum
ministro do Supremo, nenhum dos procuradores-gerais da República
envolvidos no caso, nenhum dos jornais ou jornalistas que defendem a
tese do “desvio de dinheiro público”. Todos usam, como defesa, o
silêncio e a inércia.
Eleições e caixa 2
Ao desprezarem a investigação de crime
eleitoral e optarem pela tentativa de caracterizar desvio de dinheiro
público, ministros e procuradores fizeram uma opção política e de,
digamos, marketing pessoal. Desvio atrai manchetes e holofotes, além de evocarcadeia.
Afirmar que a AP-470 tratou do “mais atrevido caso de corrupção da
História” reforça a tese, sempre repetida pelos jornais e TVs, de que o
Brasil seria melhor se jamais tivesse sido governado pela esquerda. Em
contraste, caixa dois de campanhaparece coisa banal e corriqueira, algo que todos os partidos praticam, assunto desimportante. Será?
O economista Ladislau Dowbor, professor da
PUC-SP e consultor de diversas agências da ONU, tem se empenhado em
demonstrar o contrário. Numa série de artigos e entrevistas publicados
nos últimos meses (inclusive em Outras Palavras), ele sustenta
que o modelo empresarial de financiamento dos partidos e dos políticos,
no Brasil, é a principal causa do esvaziamento da democracia, do
sequestro da política pelo poder econômico e do enriquecimento ilícito
dos governantes. Sem desmontar este modelo, diz Ladislau, combater a
corrupção será sempre uma caça catártica – porém vã – a bodes
expiatórios.
Nas “sociedades de espetáculo”, altamente midiatizadas, explica o
professor, eleger um político tornou-se extremamente caro; e possuir
recursos para bancar muitos mandatos assegura enorme poder político. Em
1997, o Congresso Nacional modificou a legislação eleitoral e autorizou
as empresas a investir em partidos e políticos. Desde então, os gastos
globais dos candidatos nas eleições dispararam. Segundo o TSE, saltaram
de R$ 827 milhões, em 2002, para R$ 4,09 bilhões, em 2012 – um aumento
de 591%, em apenas uma década – isso, sem contar o caixa dois. “Eleger
um simples deputado, em qualquer Estado do país, não custa menos de R$
2,5 milhões”, diz Ladislau.
Quem é capaz de mobilizar estes recursos? Uma pesquisa dos
professores Wagner Praion Mancuso (USP) e Bruno Speck (Unicamp) revela
que “os recursos empresariais ocupam o primeiro lugar entre as fontes de
financiamento de campanhas eleitorais brasileiras. Em 2010,
corresponderam a 74,4% de todo dinheiro aplicado nas eleições”. Mais uma
vez, sem contar os recursos transferidos “por fora”. Quais os efeitos
deste vínculo entre pode econômico e mandatos?
Ladislau retorna: “Os interesses
manifestam-se do lado das políticas que serão aprovadas – por exemplo,
contratos de construção de viadutos e de pistas para mais carros, ainda
que se saiba que as cidades estão ficando paralisadas. As empreiteiras e
as montadoras agradecem. Do lado do candidato, apenas assentado, já lhe
aparece a preocupação com a dívida de campanha que ficou pendurada, e a
necessidade de pensar na reeleição. Quatro anos passam rápido. Entre
representar interesses legítimos do povo – por exemplo, mais transporte
coletivo, mais saúde preventiva – e assegurar a próxima eleição, ele […]
sabe quem manda, está preso numa sinuca”.
As consequências deste controle são claras. Ladislau fornece um
exemplo, entre inúmeros. “Existe uma bancada Friboi no Congresso, com
41 deputados federais e sete senadores. Dos 41 deputados financiados
pela empresa, só um, o gaúcho Vieira da Cunha, votou contra as mudanças
no Código Florestal. O próprio relator do Código, Paulo Piau, recebeu R$
1,25 milhão de agropecuárias (…) Com o financiamento corporativo, temos
bancadas ruralista, da grande mídia, das montadoras, dos grandes
bancos, das empreiteiras, e temos de ficar à procura de uma bancada do
cidadão”...
De que forma este fenômeno se desdobra
também em lesão direta aos cofres públicos? “Uma dimensão importante
deste círculo vicioso”, arremata Ladislau,
“é o sobrefaturamento. Quanto mais se eleva o custo financeiro das
campanhas, mais a pressão empresarial sobre os políticos se concentra em
grandes empresas. Quando são poucas, e poderosas, e com muitos laços
políticos, a tendência é a distribuição organizada dos contratos, que
reduz as concorrências públicas a simulacros e permite elevar
radicalmente o custo dos grandes contratos. Os lucros assim adquiridos
permitirão financiar as campanhas da eleição seguinte”...
Jogando para a plateia
Nas eleições de 2012, o PT foi, segundo o
TSE, o partido que mais recebeu financiamento privado para suas
campanhas: R$ 255 milhões. As grandes empresas são pragmáticas: investem
em quem é mais capaz de reunir votos, eleger-se e defender seus
interesses: importa-lhes pouco a cor partidária. A entrada dos petistas
no circuito das campanhas sustentadas por empresas é, porém, uma das
explicações centrais para o retrocesso político do partido – reconhecido
por algumas de suas lideranças, como o governador gaúcho Tarso Genro.
Nas eleições para o Executivo, os choques são mais crus. Mas na atuação
parlamentar, por exemplo, estão se dissolvendo as diferenças – antes
nítidas – entre as bancadas petistas e as dos partidos conservadores.
Também por isso, a conduta dos
procuradores-gerais e da maioria dos ministros do STF, no julgamento da
AP-470, foi grotesco. Tendo em mãos um caso que poderia revelar alguns
dos mecanismos centrais de corrupção da política – desde que investigado
a fundo –, eles optaram pela busca fácil e preguiçosa de “culpados”
individuais, por “jogar para a plateia”, por buscar sem descanso os
holofotes. Ao fazê-lo, cometeram, como se viu, injustiças e erros
primários.
Se o ministro Celso de Mello optar, nesta
quarta-feira, por reconhecer o direito dos réus aos embargos
infringentes, haverá alguma esperança de reparar o estrago.
Tecnicamente, o espaço para corrigir as sentenças é exíguo. No plano do
debate político, serão outros quinhentos. Reaberto o caso, é provável
que as revelações factuais recentes feitas pelo trabalho jornalístico deRaimundo
Pereira e Lia Imanishi ganhem novo destaque. E – muito mais importante –
talvez surja uma brecha para argumentar que o resgate da democracia
começa com uma vastíssima reforma política, não com um espetáculo ritual
de encarceramento.
1Raimundo Pereira criou e editou Opinião (1971-1977) e Movimento (1975-1980), sobre o qual há um livro,
disponível na Internet. Antes disso, dirigiu, entre outros trabalhos, a
edição especial da revista Realidade sobre a Amazônia, considerada por alguns como “a maior de todas as reportagens da imprensa brasileira”.
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