Uma paisagem
sinistra instaurou-se no planeta com a tomada de poder mundial pelo
regime capitalista em sua nova dobra – financeirizada e neoliberal –,
poder que leva seu projeto colonial às últimas consequências, sua
realização globalitária. Junto com este fenômeno, um outro, simultâneo,
também contribui para o ar tóxico da presente paisagem: a ascensão ao
poder de forças conservadoras por toda parte, cujo teor de violência e
barbárie nos lembra os anos 1930 que antecederam a segunda guerra
mundial e os anos mais recentes das ditaduras que persistiram até os
anos 1980. Como se tais forças jamais houvessem desaparecido de fato,
mas apenas tivessem feito um recuo estratégico temporário à espreita de
condições favoráveis para sua volta triunfal.
Neoliberalismo e neoconservadorismo são sintomas de forças reativas radicalmente distintos, originados em distintos tempos históricos e que coexistem em nossa contemporaneidade. À primeira vista, a simultaneidade entre eles nos parece paradoxal, o que turva nossa compreensão: o alto grau de complexidade, flexibilidade, sofisticação e refinamento perverso próprio do modo de existência neoliberal e suas estratégias de poder está a anos luz do arcaísmo tacanho e da rigidez das forças abrutalhadas deste neoconservadorismo – que só merece o prefixo “neo” por articular-se com condições sócio-político-econômicas distintas daquelas em que havia estado no poder na história recente. Porém, passada a perplexidade inicial, torna-se evidente que o capitalismo financeirizado precisa destas subjetividades rudes no poder. São como capangas que se incumbirão do trabalho sujo: destruir todas as conquistas democráticas e republicanas, dissolver seu imaginário e erradicar da cena seus protagonistas – o que inclui as esquerdas em todos seus matizes, mas não só elas.
Neoliberalismo e neoconservadorismo são sintomas de forças reativas radicalmente distintos, originados em distintos tempos históricos e que coexistem em nossa contemporaneidade. À primeira vista, a simultaneidade entre eles nos parece paradoxal, o que turva nossa compreensão: o alto grau de complexidade, flexibilidade, sofisticação e refinamento perverso próprio do modo de existência neoliberal e suas estratégias de poder está a anos luz do arcaísmo tacanho e da rigidez das forças abrutalhadas deste neoconservadorismo – que só merece o prefixo “neo” por articular-se com condições sócio-político-econômicas distintas daquelas em que havia estado no poder na história recente. Porém, passada a perplexidade inicial, torna-se evidente que o capitalismo financeirizado precisa destas subjetividades rudes no poder. São como capangas que se incumbirão do trabalho sujo: destruir todas as conquistas democráticas e republicanas, dissolver seu imaginário e erradicar da cena seus protagonistas – o que inclui as esquerdas em todos seus matizes, mas não só elas.
A
aliança entre neoconservadores e neoliberais é facilitada pela
coincidência de seus interesses em relação a este objetivo específico.
Tal interesse por parte dos neoconservadores, acrescido do fato de que
sua torpe subjetividade seja arraigadamente classista e racista, os leva
a cumprir o papel de capangas sem qualquer barreira ética e numa
velocidade estonteante. Quando nem bem nos damos conta de uma de suas
tacadas, uma outra já está em vias de acontecer, geralmente decidida
pelo congresso na calada da noite. O exercício desta tarefa lhes
proporciona um gozo narcísico perverso, a tal ponto inescrupuloso, que
chega a ser obsceno. Com o trabalho sujo destes capangas do
neoliberalismo, prepara-se o terreno para o livre fluxo do capital
transnacional. É neste cenário que se dá o novo tipo de golpe, criado
pela atual versão do capitalismo: um seriado que se desenrola em três
temporadas.
Na
primeira temporada, se estabelece uma aliança entre, de um lado, os
poderes Legislativo, Judiciário e Policial e, de outro, os grupos que
detém o poder da mídia. Sustentados por esta aliança, os capangas do
capitalismo financeirizado dão o golpe que expulsa do governo seus
líderes mais à esquerda. Mas o golpe não se encerra por aqui: uma vez
concluído este primeiro trabalho sujo, tem início sua segunda temporada.
Trata-se agora do desmonte da constituição, sobretudo das leis que
garantem direitos aos mais desfavorecidos, bem como a privatização dos
bens e empresas estatais mais rentáveis. E o Estado vai sendo assim
rapidamente reduzido ao mínimo para, ao final do seriado, passar a
cumprir a mera função de facilitador de investimentos do capital
transnacional.
Enquanto
se desenrola esta operação, os próprios capangas do capitalismo
globalitário serão os novos alvos das denúncias de corrupção,
preparando-se o terreno para sua ejeção tão logo sua tarefa esteja
concluída. No final da última temporada do seriado do golpe, o novo
regime os jogará no lixo da história, sem o menor constrangimento.
Paralelamente, ainda nesta segunda temporada, o mesmo se faz com o
empresariado nacional, cuja permanência em cena interessa ao
neoliberalismo apenas enquanto precise de sua cumplicidade para as
privatizações e para o extermínio de tais leis (principalmente as
trabalhistas, o que no Brasil não se limitará à precarização mas chegará
ao cúmulo de legalizar o trabalho escravo). E em pleno processo de seu
desmonte pelo congresso, o empresariado já começa a tornar-se também ele
alvo de denúncias de corrupção, cujo objetivo é tirá-lo do comando das
obras públicas, assim que as privatizações estiverem consumadas.
Com
esta dupla ejeção e já tendo se instaurado no país uma grave crise
institucional e econômica, intensificada pela paralisia das obras
públicas após as condenações do empresariado nacional, o terreno estará
totalmente pronto para a chegada dos investimentos sem entraves do
capital transnacional. Nesta segunda temporada do seriado do golpe, são
particularmente importantes as cenas do ringue entre distintas máfias de
políticos sórdidos, assim como entre eles e as máfias do empresariado.
“Premiados” por suas delações, eles se destroem mutuamente diante da
sociedade que, noite após noite, assiste perplexa ao espetáculo grotesco
da derrocada de ambos nas telas da TV – espetáculo ao qual se tem
acesso igualmente pelas redes sociais que se pode buscar a qualquer
hora, assim como pelos jornais, que parte das classes médias e altas
leem ao despertar. São imagens e mensagens, escritas ou faladas, de
negociações de falcatruas econômicas e políticas, clandestinamente
captadas em telefonemas, e-mails e gravações, bem como em documentos
entregues pelos delatores ou encontrados pela polícia nas devassas de
suas casas e escritórios. É um verdadeiro show de psicopatia, que nos
lembra os mais hilários filmes de série B e seus canastrões. A triste
diferença é que, neste caso, a narrativa ficcional é baseada em
elementos da realidade, cuja edição visa provocar efeitos micropolíticos
nas subjetividades: a propagação da insegurança e do medo de colapso.
Isto
não é novo: o poder no regime colonial-capitalístico atua na esfera
micropolítica desde sua fundação no século XV. Sua matriz nesta esfera é
o abuso da vida enquanto força de criação e transmutação – sua essência
e também condição para sua persistência, na qual reside seu destino
ético. Isto inclui a potência vital em todas suas manifestações e não
apenas como força de trabalho, como se pensava no marxismo. O intuito do
abuso é desviá-la de seu destino, convertendo a força de “criação” de
novos modos de existência, toda vez que a vida assim o exige, em força
de “criatividade” investida na composição de novos cenários para o
consumo e a acumulação de capital (econômico, político, cultural e
narcísico) e que reproduz e reacomoda a cartografia estabelecida. No
entanto, na nova dobra do regime, a intervenção nesta esfera refina-se e
se intensifica. Isto pode ser constatado não só nas tecnologias de
manipulação das subjetividades acima descritas, mas também no último
trabalho sujo destes patéticos capangas do neoliberalismo, roteiro do
final da segunda temporada do seriado do golpe, no qual o golpe incide
mais direta e veementemente na esfera micropolítica.
Trata-se
da irrupção do surto conservador mencionado no início. Apelando à moral
religiosa, toma-se como como alvo a cultura, em seu sentido amplo que
vai das produções artísticas aos modos de existência – o que inclui
todos aqueles que não se encaixam nas categorias machistas, homofóbicas,
transfóbicas, racistas e xenofóbicas de sua alma
capitalista-colonial-escravocrata. Com ampla divulgação pela mídia,
certos tipos de práticas passam a ser associadas ao demônio, como o eram
nos séculos da Inquisição (e não só) as práticas de mulheres chamadas
pejorativamente de bruxas, o que autorizava sua prisão, tortura e morte.
Fiquemos
apenas em três exemplos. O primeiro é a arte: certas práticas
artísticas passam a ser desqualificadas e criminalizadas. Nesta
operação, busca-se destruir a dignidade ética de sua pulsão criadora,
para neutralizar sua potência micropolítica: tornar sensíveis as
demandas da vida quando esta se vê sufocada nas formas vigentes de
existência individual e coletiva. Materializadas em obras, tais demandas
teriam o poder de contágio dos públicos que a elas tem acesso, o que
tenderia a mobilizar a força coletiva de transfiguração das formas da
realidade e de transvaloração de seus valores. Ao atacar a arte,
pretende-se desmobilizar a possibilidade de irrupção social de tal
força. O segundo exemplo são os movimentos em torno das mutações das
subjetividades, especialmente nos âmbitos da sexualidade e das relações
de gênero (movimentos feministas,LGBTQ, etc). Mobiliza-se a volta aos
valores da heterossexualidade monogâmica da família nuclear patriarcal
como forma absoluta de erotismo e de laço social, visando interromper o
processo pulsional de criação de novas formas, desencadeado pela
urgência da vida em livrar-se do sufoco em que se encontra nas formas
dominantes nestes terrenos.
O
terceiro exemplo são as tradições culturais africanas e indígenas,
fortemente presentes em todas as ex-colônias: estas são sistematicamente
perseguidas e humilhadas. No Brasil, opera-se uma destruição em série
de terreiros de Candomblé e a expulsão dos indígenas de suas terras, ao
que se soma a abolição das leis que as haviam demarcado, fruto de uma
árdua luta das décadas anteriores – isto, quando os indígenas não são
literalmente exterminados num despudorado genocídio. Se no último
exemplo o objetivo destas operações do poder é mais obviamente
macropolítico (o roubo dos terrenos do Candomblé e das terras
indígenas), basta colocá-lo lado a lado com os dois exemplos anteriores,
para nos darmos conta de que há também nesta operação um objetivo mais
sutil, micropolítico. Nesta esfera, a meta é a neutralização da
alteridade e a desmobilização da potência de transfiguração da realidade
coletiva de que a oportunidade de habitar a trama relacional tecida
entre esses distintos modos de existência seria portadora.
À
operação macropolítica de desmonte do Estado e da economia, soma-se a
operação micropolítica de produção de subjetividades. A fragilização
resultante do medo inculcado pelo tom apocalíptico da mídia em sua
narrativa sobre a crise intensifica-se com o humilhante ataque à
dignidade dos modos de existência acima mencionados. Isto faz com as
subjetividades tendam a agarrar-se a qualquer promessa de estabilidade e
segurança, do que faz parte a projeção da causa de sua fragilidade nas
figuras de bode expiatório construídas em tais narrativas. Nestas
estratégias defensivas, sua pulsão vital entrega-se ao abuso
colonial-capitalístico por seu próprio desejo. Com esta dupla operação
indissociável, macro e micropolítica, prepara-se a sociedade para a
terceira e última temporada: a tomada do poder político e econômico pelo
capitalismo globalitário. Ela estará enfim pronta para recebê-lo como o
salvador “civilizado” que saneará a economia de sua falência e
restabelecerá a dignidade da vida pública, devolvendo ao país seu
prestígio perdido e a serenidade a seus cidadãos. Fim do seriado. Golpe
concluído.
O
novo tipo de golpe de Estado oculta-se, assim, sob a máscara de
legalidade democrática, sem fazer uso da força militar, nem expor seus
verdadeiros agentes. A composição da máscara é sutil e astuta. A segunda
temporada do seriado do golpe começa a ser veiculada pela mídia
imediatamente após o final da primeira. Os scripts
são idênticos, só mudam os personagens que desempenham o papel de réus
acusados de corrupção: os líderes progressistas da primeira temporada
são agora substituídos pelos elementos mais inescrupulosos da classe
política e seus cúmplices da classe empresarial. havido um golpe de
estado, já que não só os políticos de esquerda foram punidos. Se na
primeira temporada, parcelas significativas da população ainda viam
claramente que se tratava de um golpe, cujo objetivo era aniquilar a
imagem dos políticos progressistas e tirá-los do poder, com a a
substituição dos personagens na segunda temporada, vence na maioria a
ideia de que a expulsão dos governantes progressistas havia sido, de
fato, uma ação imparcial e digna, visando a necessária moralização da
vida pública. Tal ideia é inclusive assumida por aqueles que tem menos
acesso aos direitos – parcela majoritária da população – e que haviam
sido favorecidos pelos governos progressistas.
Em
suma, o novo tipo de golpe, próprio do capitalismo globalitário,
consiste num complexo conjunto de operações micro e macropolíticas, no
qual mata-se vários coelhos numa cajadada só (todos os coelhos cuja
existência estorva o livre fluxo de capital transnacional): os líderes
de esquerda e o imaginário progressista a eles associado (o que facilita
o desmantelamento da Constituição, as privatizações e a entrega do país
ao capital privado transnacional), os políticos de alma escravocrata e
pré-republicana, os líderes do empresariado nacional e, por fim e não
menos importante, a própria potência coletiva de ação pensante criadora
que se mobilizaria diante do intolerável. E o capitalismo transnacional
globalitário sai vitorioso e de mãos aparentemente limpas. Esta será,
provavelmente, a apoteótica cena final do seriado do golpe.
O que não estava previsto no script
deste seriado é que passados os primeiros capítulos da segunda
temporada , na qual se conseguiu instaurar a ilusão de que não se tratou
de golpe, seus capítulos seguintes – onde se vê a destruição das
conquistas democráticas e a penalização da criação cultural – não terão o
mesmo êxito. Por colocarem a vida manifestamente em risco, diante de
tais operações o véu da ilusão tende a cair: instaura-se nas
subjetividades um estado de urgência que faz com que o desejo consiga
deslocar-se de sua entrega ao abuso e passe a agir de modo a
transfigurar o presente, impedindo que prossiga a carnificina. Uma
resistência micropolítica começa então a surgir por toda parte, de modo a
enfrentar a nova modalidade de golpe, na qual ficou mais explícito o
fato de que sua estratégia não é apenas macropolítica.
Insurgir-se
também nesta esfera é o avanço que nos trazem os movimentos que vem
desestabilizando aqui e acolá o poder mundial do capitalismo
financeirizado – movimentos que se intensificaram após o tsunami dos
golpes de estado provocado pelo novo regime por toda parte. Este avanço
nos ajuda a ver que o horizonte do modo tradicional de resistência das
esquerdas reduz-se à esfera macropolítica e que esta redução seria uma
das causas de sua impotência frente ao atual estado de coisas. Tal
entendimento tem o poder de nos tirar da paralisia melancólica fatalista
na qual nos faria soçobrar a sombria paisagem que nos rodeia e tende,
inclusive, a fortalecer a resistência na esfera macropolítica.
As
próximas temporadas do seriado do capitalismo globalitário – que começa
bem antes dos recentes golpes e certamente seguirá após os mesmos –,
serão delineadas coletivamente nos embates entre as forças reativas que
promovem o abuso da vida em sua potência pulsional de criação e as
forças ativas que promovem sua afirmação transfiguradora. Impossível
prever o desfecho (sempre provisório) deste embate. Mas há um alento no
ar que cria condições favoráveis para liberarmos a pulsão das sequelas
de seu abuso colonial-capitalista, de modo a imaginarmos novos
cenários e agirmos em sua direção. O alento nos vem da crença de que é
possível despoluir o ar ambiente de sua poeira tóxica e que isto depende
de agregarmos às estratégias de resistência este trabalho coletivo de
descolonização na esfera micropolítica.
O artigo da filósofa brasileira Suely Rolnik
faz parte da série Diálogos Brasil-Europa, uma iniciativa da EUNIC
-European Union National Institutes for Culture in São Paulo- para que
intelectuais dos dois continentes debatam sobre o tema "Populismo e
Cultura"Carta Maior
Originalmente publicado no El País Brasil
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