Créditos da foto: O Brasil é o décimo mais desigual no ranking do
Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento / Pilar Velloso
Décimo
país mais desigual do mundo no ranking do Programa das Nações Unidas
para o Desenvolvimento, o Brasil parece ter se acostumado com o abismo
que separa ricos e pobres. No ano passado, o grupo do 1% mais abastado
teve rendimento médio 36 vezes superior ao da metade mais desprovida da
sociedade. A estarrecedora estatística, divulgada pelo IBGE em abril,
recebeu tímidas menções na mídia.
Em 2017, um estudo da Oxfam
revelou que unicamente seis bilionários concentravam a mesma riqueza do
que 100 milhões de brasileiros, a metade mais pobre da população. Teve
repercussão um pouco maior, mas parece ter caído no esquecimento. Embora
as disparidades sociais tenham múltiplas causas, algumas delas
históricas, como o legado de três séculos e meio de escravidão, os
especialistas são unânimes em afirmar que o injusto sistema tributário
contribui decisivamente para aprofundar o fosso.
A distorção é
reconhecida há tempos. Em 2011, Fernando Gaiger Silveira, pesquisador do
Ipea, revelou que os 10% mais pobres comprometiam 32% de todos os seus
rendimentos com pagamento de impostos, ao passo que os 10% mais ricos
dispendiam apenas 21% de sua renda. A injustiça decorre, sobretudo, do
elevado peso dos tributos indiretos, que incidem sobre o consumo. Como
os que ganham menos costumam sacrificar a maior parte dos vencimentos
com alimentação, moradia e transporte, acabam sobretaxados.
Apesar
de o diagnóstico ser mais do que conhecido, a reforma tributária em
discussão no Congresso Nacional, sob a relatoria do deputado tucano Luiz
Carlos Hauly, limita-se a propor uma simplificação do sistema, com a
substituição de um conjunto de tributos por um imposto de valor
agregado, semelhante ao adotado na Europa. Não há, porém, qualquer
proposta para aumentar a taxação sobre a renda e o patrimônio, de forma a
aliviar a carga incidente sobre o consumo.
Por essa razão, um
movimento suprapartidário, encabeçado pela Associação Nacional dos
Auditores Fiscais da Receita Federal (Anfip) e pela Fenafisco, entidade
homóloga que atua em nível estadual, apresentou recentemente um
manifesto na Câmara por uma “Reforma Tributária Solidária”, capaz de
reduzir as desigualdades e estimular o desenvolvimento.
Entre
4 e 6 de junho, as entidades vão realizar, em São Paulo, o “Fórum
Internacional Tributário”, com a presença confirmada de renomados
especialistas estrangeiros, a exemplo do economista irlandês Marc Morgan
Milá, pesquisador do World Wealth and Income Database, instituto
dirigido pelo francês Thomas Piketty. Na abertura do evento, será
lançado o livro A Reforma Tributária Necessária, alentado diagnóstico do cenário brasileiro feito por 42 especialistas.
CartaCapital recebeu,
em primeira mão, uma prévia da obra, organizada por Eduardo Fagnani,
professor do Instituto de Economia da Unicamp e colunista do site.
“Ninguém é contra a simplificação na cobrança de impostos. A proposta em
discussão na Câmara não altera, porém, o caráter regressivo do sistema,
que cobra proporcionalmente mais de quem tem menos. Além disso, vários
dos tributos que serão extintos têm recursos carimbados para financiar
as áreas sociais do governo, e não há clareza se a vinculação será
mantida no novo formato.”
O movimento defende que a reforma
aumente a tributação direta, que incide sobre a renda e o patrimônio das
camadas mais ricas da população, e reduza a tributação indireta. Além
da defesa de uma maior progressividade na cobrança de impostos, o grupo
propõe a criação de um fundo para financiar a proteção social, principal
instrumento de redução das desigualdades. “Essas duas medidas,
combinadas, são indispensáveis para assegurar o desenvolvimento
econômico e social do País”, diz Fagnani.
“Ao aliviar a carga
sobre os mais pobres, aumentará a renda disponível para consumo. Com a
demanda aquecida, a produção e a geração de empregos tendem a crescer.
Da mesma forma, se o brasileiro tiver serviços públicos de qualidade,
não precisará mais gastar com saúde ou educação privada. Sobrará ainda
mais dinheiro para consumir. Cria-se um ciclo virtuoso, capaz de nos
reconectar com o tão sonhado Estado de Bem-Estar Social previsto na
Constituição de 1988 e existente na Europa.”
Atualmente, o
sistema brasileiro apresenta anomalias sem precedentes no mundo
desenvolvido. Os impostos sobre o consumo representam 49,7% da carga
tributária total, enquanto os tributos sobre a renda e o patrimônio
representam porcentuais bem mais modestos, 21% e 4,4%, respectivamente.
Nos países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico,
a taxação sobre o consumo é sempre inferior à soma dos outros dois
tipos de tributos. Nos EUA, 49,1% da carga provém de impostos sobre a
renda e 10,3%, sobre o patrimônio. Os impostos sobre o consumo
correspondem a 17%.
“Há
muito tempo a estrutura tributária tornou-se um obstáculo para o
crescimento. Desde os anos 1990, para garantir o pagamento de juros da
crescente dívida pública, o governo viu-se forçado a aumentar a
arrecadação. Em vez de avançar na tributação direta, que sempre enfrenta
maior resistência dos setores abastados, preferiu criar novas
contribuições sociais e econômicas. Esses ‘puxadinhos’ acabaram por
deformar a estrutura tributária no País, sacrificando a competitividade
da indústria nacional”, explica o pesquisador Fabrício Augusto de
Oliveira, autor do premiado livro Economia e Política das Finanças Públicas no Brasil e um dos colaboradores da obra a ser lançada pela Anfip e Fenafisco.
“Não
propomos um aumento da carga tributária global, hoje superior àquelas
de economias emergentes e semelhante às de nações desenvolvidas. A ideia
é redistribuir essa carga, de forma a aliviar o peso para os mais
pobres e fortalecer o mercado interno.”
As anomalias não param
por aí. Em 1995, o governo de Fernando Henrique Cardoso extinguiu a
tributação sobre lucros e dividendos. Dos 35 integrantes da OCDE, apenas
a Estônia adotou isenção semelhante. Dessa forma, os donos e acionistas
de empresas, os mais ricos, passaram a pagar menos impostos.
Além
disso, o País tem atualmente apenas quatro alíquotas de Imposto de
Renda, a mais alta de 27,5%. Nos países desenvolvidos, há um maior
número de alíquotas, a taxação é progressivamente maior para os mais
ricos e a cobrança máxima é quase sempre superior a 40%. Na América
Latina, a média é de 31,5%.
Os efeitos dessas distorções foram demonstrados pela Oxfam em 2017, quando divulgou o relatório A distância que nos une, um retrato das desigualdades brasileiras.
Quem tem renda superior a 320 salários mínimos mensais (299.840 reais)
paga uma alíquota efetiva de imposto de renda, após todos os descontos,
deduções e isenções, similar àquela de quem ganha cinco salários mínimos
(4.685 reais), e quatro vezes menor em comparação com cidadãos que
recebem entre 15 e 40 salários.
O financiamento da proteção
social depende de um aumento da arrecadação, razão pela qual o movimento
propõe uma revisão da política de desonerações, em franca expansão.
Como CartaCapital demonstrou na edição 996, o Brasil deverá abrir
mão de mais de 283,4 bilhões de reais em renúncias fiscais em 2018.
Estimado pela Receita Federal, o valor é superior à soma dos orçamentos
da Educação e da Saúde: 107,5 bilhões e 131,4 bilhões,
respectivamente. Reivindica-se ainda o aperfeiçoamento dos instrumentos
de combate à sonegação e evasão, inclusive com a criminalização das
condutas. Pela atual legislação, quem quita ou parcela o débito antes de
a Justiça receber a denúncia é beneficiado pela extinção da
punibilidade.
Diretor da Sociedade Brasileira de Economia
Política e coordenador do Centro de Estudos de Conjuntura e Política
Econômica da Unicamp, Pedro Rossi afirma que a política tributária pode
servir tanto como um vetor de desenvolvimento social quanto de
crescimento econômico.
Em um país no qual metade da população
ainda não tem acesso à rede coletora de esgoto, reservar recursos para
investir em obras de saneamento básico beneficia não apenas a população
atendida, mas também o setor de construção civil, ressalta o economista.
“O que não se pode é manter a lógica perversa de oferecer um benefício
com uma mão e retirar com a outra. Por vezes, o Estado oferece um
serviço público à população mais pobre, e depois diminui a sua renda,
por meio da excessiva taxação sobre o consumo”.
'A proposta em discussão na Câmara não altera o caráter regressivo do sistema', alerta Eduardo Fagnani
Em
agosto, o grupo pretende lançar outro livro sobre o tema. “Essa
primeira obra é focada no diagnóstico e nas premissas do projeto que
temos em mente. Na segunda, apresentaremos propostas mais concretas de
intervenção, acrescentando as sugestões dos especialistas estrangeiros
que participarão do fórum internacional”, explica Fagnani. “A ideia é
que esses dois livros contribuam para pautar uma reforma assentada em um
projeto de desenvolvimento econômico e social, inclusive durante as
eleições deste ano”. - do Carta Maior
*Publicado originalmente na Carta Capital
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