2 de abril de 2014

O Golpe de 1º de abril e seu arsenal de mentiras


O golpe de 1964 e sua ditadura foram uma usina de mentiras, do início ao fim.
A começar por sua data de nascimento. Seus defensores dizem que ele ocorreu em 31 de março, e não em 1º de abril – mentira. Dizem que foi uma revolução – mentira. Que aconteceu para evitar que o País fosse transformado em uma ditadura comunista – mentira. Que garantiria a lei e a ordem e defenderia a democracia – mentira. Que combateria a corrupção e a politicagem – tudo mentira.
Os golpistas de ontem e de hoje fazem referência ao 31 de março como sua data oficial porque sempre temeram que o movimento ficasse conhecido por seu verdadeiro nome: o Golpe de 1º. de Abril.
O plano para a derrubada do governo João Goulart estava sendo programado para a primeira semana de abril, certamente não para o dia primeiro. O fato de o desenlace do golpe ter sido dado no 1º de abril é obra do general Olympio Mourão Filho, comandante da 4ª Região Militar, em Minas Gerais, que, no dia 31 de março, começou a movimentar suas tropas em direção ao Rio de Janeiro. Mourão Filho só conseguiu chegar ao Rio de Janeiro e estacionar seus tanques no Estádio do Maracanã no dia 2 de abril. Chegou tarde. O golpe já estava dado na véspera.
Se for para considerar a data do 31 de março, por causa da movimentação dos tanques de Mourão Filho, a Independência do Brasil deveria agora ser comemorada no dia 14 de agosto, quando o príncipe D. Pedro montou em seu cavalo para se deslocar do Rio de Janeiro para as margens do Ipiranga, no estado de São Paulo.
O fato é que, ainda no dia 1º de abril, Jango (apelido pelo qual João Goulart era popularmente conhecido) chegou a rumar do Rio de Janeiro para Brasília, e lá permaneceu até tarde da noite. Fez reunião com seus ministros e só ao final do dia rumou para a Base Aérea de Brasília.
Os ministros que presenciaram sua fuga relatam sua demora na Base Aérea até depois das 22 horas, quando partiria para o Rio Grande do Sul, onde era esperado pelo governador Leonel Brizola, que defendia, enfaticamente, a proposta de impor resistência e reconquistar o poder. Portanto, foi no dia 1º de abril quando Jango de fato se viu obrigado a abandonar Brasília, a capital da República. É quando se pode dizer, de fato, que ele foi deposto, para nunca mais voltar ao País.
No dia 2 de abril, mais uma mentira. O presidente do Congresso, Senador Auro de Moura Andrade, declarou  vago o cargo de presidente da República – mentira. Jango estava ainda no Rio Grande do Sul. Moura Andrade havia sido um dos organizadores da “Marcha da Família com Deus pela Liberdade em São Paulo”, nome escandalosamente mentiroso para a marcha do golpismo.
A sessão do Congresso que declarou vaga a Presidência foi tão fajuta que nem os golpistas a levaram a sério. O presidente da Câmara, Ranieri Mazzilli, que pela Constituição era o substituto do presidente, ficou apenas 14 dias no cargo. No dia 15 de abril, o Marechal Humberto de Alencar Castello Branco seria empossado na Presidência da República. Ele havia sido eleito indiretamente por um Congresso Nacional expurgado de 40 parlamentares.
Se alguém tinha dúvida de quem mandava e desmandava no país, naquele dia 15 a certeza foi esfregada na cara dos golpistas civis. Mazzilli seria enxotado da Presidência da República, e Auro de Moura Andrade, que se achava um dos donos do novo regime, sequer conseguiu apoio para se eleger vice do Marechal.
Castello Branco, quando editou o Ato Institucional nº 4, convocando o Congresso a votar e promulgar uma nova constituição, declarou que aquele seria o último dos atos institucionais – mentira. O ato seguinte, o famigerado AI-5, ainda seria complementado por mais outros 12 Atos Institucionais. A constituição aprovada pelo Congresso, em 1967, duraria pouco, sendo substituída em 1969 por um novo texto, baixado por uma Junta Militar.
De revolução, o regime não teve nada além de um slogan mentiroso. Foi golpe, ditadura e conservadorismo. A motivação essencial do golpismo foi conter as reformas de base propostas por Jango, na educação, no sistema financeiro e tributário e no campo, com uma reforma agrária pressionada pelo movimento ascendente das Ligas Camponesas, que seriam depois duramente reprimidas.
A ditadura foi um regime estúpido, violento, que envergonharia a Idade Média. Assassinou militantes de grupos de esquerda e inocentes. Expôs crianças e familiares a sessões de tortura.
Hoje, os comandantes das Forças Armadas dizem que não têm nada a declarar – mentira. Devem um pedido de desculpas à sociedade brasileira e deveriam colaborar para que os mortos e desaparecidos pudessem ser encontrados e enterrados dignamente. Isso não apagaria o passado, mas daria mais dignidade às Forças Armadas do que o vergonhoso silêncio de seus comandantes.
Os golpistas se diziam contra a politicagem e a corrupção – mentira da grossa. Para governar, com o apoio do Congresso e sustentação dos governos estaduais e prefeituras, a ditadura patrocinou a política mais tradicional e corrupta possível. Seus ministros protagonizaram inúmeros escândalos.
Os chefões estaduais eram políticos pró-ditadura, indicados com o aval dos militares para serem depois aclamados como governadores pelas Assembleias Legislativas, também já drasticamente expurgadas de opositores.
Os militares não inventaram a política do “toma lá, da cá”, e nem criaram os políticos tradicionais, mas se valeram deles e os fizeram maiores. Era o preço que a ditadura se dispôs a pagar para conter o que chamavam de “populismo” e de “república sindicalista”.
O alto comando da ditadura patrocinou as carreiras de políticos como Antonio Carlos Magalhães, na Bahia; José Sarney, no Maranhão; e de Chagas Freitas, do Rio de Janeiro, um golpista que acabou entrando no MDB porque a Arena era controlada pelo corvo, Carlos Lacerda.
Políticos dessa espécie deram origem a substantivos irônicos, como o malufismo e o chaguismo, que representavam a política de troca de favores. A pior “escola” da política brasileira foi aperfeiçoada durante a ditadura.
No Rio, as práticas de Chagas Freitas ficaram conhecidas como a “política da bica d’água”. Na época da lata d’água na cabeça, o político que prometia instalar uma bica d’água na favela, com o apoio do governador, ganhava votos certos.
A ditadura foi pródiga em escândalos de corrupção. Não é de se admirar, pois ditaduras são regimes corruptos por excelência. Muita gente certamente não se lembra, ou sequer era nascida, quando esvaziaram o caixa da Capemi, a própria Caixa de Pecúlio dos Militares. Casa de ferreiro, espeto de pau. Também ficaram famosos o caso Lutfalla e o escândalo da Mandioca, que envolveram o desvio de grandes somas de recursos públicos. Nada apurado, ninguém punido.
As grandes obras públicas, ditas faraônicas, de tão grandes, eram o paraíso do superfaturamento, do empreguismo, e muitas se tornaram obras inacabadas – mas pagas religiosamente.
Mentiras e mais mentiras. E ainda tem gente que tem saudade. Será por quê?

Antonio Lassance  é cientista político. - no Correio do Brasil

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