Cerca de 100 crianças morrem por dia vítimas de maus tratos no Brasil (IBGE, 1988). 18 mil crianças são espancadas diariamente; ao ano, 6.570.000 (CNBB, 1999). 10%
das crianças que se apresentam nas urgências dos hospitais
brasileiros, com menos de cinco anos, são vítimas de abuso físico. Nas
internações hospitalares, verifica-se elevada ocorrência de traumatismo
craniano em crianças (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2004). Em 1998, foram
internadas por essa causa 16.376 crianças menores de 10 anos, com
predomínio do sexo masculino. Deste total, 56,8% eram menores de cinco
anos, sendo representativo o número de internações em crianças menores
de um ano (MELLO e SOUZA, 2004).
Esses
números evidenciam uma trágica realidade: a violência é atualmente uma
das principais causas de morte e agravos a saúde entre crianças e
jovens. No Brasil e no mundo ocidental, os fatores preponderantes das
mortes de crianças e de jovens não são mais as enfermidades de origens
biomédicas e sim o estilo de vida. Jarbas Barbosa da Silva Júnior e
Horacio Toro Ocampo, na apresentação da publicação Impacto da violência
na saúde do brasileiro, enfatizam que a maior ameaça à vida das crianças e dos jovens no Brasil não são as doenças, mas sim a violência.
Um elemento agrava ainda mais a situação de violência vivida por crianças e adolescentes no Brasil. A maioria dos casos acontece dentro de casa e
tem como principal agressor os próprios pais biológicos. A violência
que afeta as crianças brasileiras ocorre predominantemente na relação
familiar.
De
acordo como os resultados obtidos no Inquérito do Sistema de Vigilância
em Violência e Acidentes, do Ministério da Saúde (VIVA), em 2007, 61 % das crianças e 92% dos adolescentes tiveram como causa principal de internação a violência física.
Os dados dos inquéritos realizados nos anos de 2006 e 2007 apontam que
a mãe (25%) seguida pelo pai (20%) são os principais autores de
violências contra crianças (0 - 9 anos de idade). Uma década antes as
estatísticas inglesas já confirmavam a tendência evidenciada no
inquérito do Sistema VIVA.
Os
danos, as lesões, os traumas e as mortes decorrentes da violência
física contra as crianças e adolescentes têm um elevado custo social,
causam prejuízos econômicos, sobrecarregam o sistema de saúde,
aumentando os gastos com emergência, assistência e reabilitação. Um
estudo estima que cerca de 3,3% do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro são gastos com os custos direitos da violência,
essa cifra sobe para 10,5% quando se incluem os custos indiretos e
transferências de recursos. O gasto com os custos diretos da violência
no país supera três vezes o que se investe em ciência e tecnologia.
Sem
sombra de dúvida, o maior custo é o humano, pois a violência física
intrafamiliar tem destruído vidas, ferido corpos e mentes de muitas
crianças e adolescentes. Ela provoca danos mentais e emocionais
incalculáveis nas vítimas e em seus familiares. Apesar de
estarrecedores, os números apresentados anteriormente revelam apenas a
ponta do iceberg. Todavia, ainda
que tivéssemos estatísticas mais precisas, acredito que só
alcançaremos a dimensão real da tragédia diária que atinge crianças e
adolescentes no Brasil, se nos aproximarmos de fato da dor visceral vivenciada em cada história de violência física.
Um breve e doloroso retrospecto de histórias já contadas em noticiários nacionais:
No interior de São Paulo,
um garoto de seis anos foi espancado
violentamente por sua mãe e padrasto
e depois lançado de uma ponte;
Izabella Nardoni foi morta por estrangulamento
e jogada pela janela de um prédio de classe média,
em São Paulo. O pai e a madrasta foram
os autores deste crime;
Os irmãos João Vitor dos Santos Rodrigues, 13 anos, e Igor Giovani Santos
Rodrigues, 12 anos, foram barbaramente assassinados pelo pai, contando
com a cumplicidade da madrasta, na cidade de Ribeirão Pires (SP).
Ao
ler os casos de violências citadas anteriormente, a maioria das
pessoas se assombra, se questiona: Que mundo é esse, meu Deus! Por que
mães e pais fazem isto? Mas, comumente, essas mesmas pessoas logo
depois desviam o olhar ou os ouvidos dos noticiários e retornam
comodamente a alimentar suas velhas crenças e atitudes de sempre, como por exemplo:
Todo pai e mãe têm o poder e posse absoluta sobre os filhos;
Os conflitos devem ser resolvidos no tapa;
Nenhuma família deve ser invadida em sua privacidade;
As
condutas dos pais sobre os filhos são incontestáveis e estes podem e
devem bater em seus filhos para estes aprenderem o que é correto;
Que ao bater em seus filhos os pais nunca perderão o controle da situação;
Um pouco de violência não vai prejudicar o desenvolvimento de seus filhos, etc.
Bem, sinto muito, mas você e eu não estamos inocentes nestas histórias,
pois estes pais e mães seguem as mesmas crenças que a maioria dos
cidadãos brasileiros tanto defende, como as que foram citadas acima. Só o
que muda é a intensidade dos atos; o princípio que gera essas crenças é
o mesmo: que os fins justificam os meios. Somos nós, bem intencionados
cidadãos, que alimentamos dia a dia essas crenças e damos
implicitamente consentimento para que estes pais cheguem a tanto.
Os
autores de violências físicas levaram ao extremo, às últimas
conseqüências, provavelmente tensionados por suas dificuldades afetivas
ou pelos stresses cotidianos, o que a maioria da sociedade defende. Eles são os protagonistas, os ícones de nosso trágico discurso. O
discurso que o mundo adulto é superior, e que tudo pode em relação aos
mais jovens, nos impede de interditar, logo na origem, a violência
física cometida contra crianças e adolescentes. A generalização desse discurso protege os autores de violências e descuida das vítimas.
Geralmente quando acontece uma situação de violência, dirigimos
a nossa atenção para dois personagens, o autor da violência e o
sujeito que sofre a violência. No entanto, costumamos esquecer um
personagem crucial nesta história: “o amolador de faca”.
O amolador de faca representa todos aqueles que de forma tácita ou
explicita dizem todos os dias: Faça, você pode! Você deve, é de seu
direito! Não deixe barato, mostre quem manda aqui!
Acredito que um
dos motores que faz a roda do ciclo vicioso da violência girar é o
consentimento dado por nossa sociedade às formas violentas de se
resolverem as diferenças, os conflitos. O
uso de violências físicas na educação e no cuidado de crianças e
adolescentes tem perpetuado o ciclo vicioso de violência dentro da vida
familiar. Os pais batem nos filhos; os filhos batem em seus irmãos e
colegas de escola e de rua; depois, filhos e colegas batem em suas
namoradas, parceiras e esposas, que por fim, também batem em seus
filhos. Semeamos ventos e colhemos tempestades!
As pessoas que defendem a erradicação dos castigos físicos e humilhantes querem colocar uma cunha nessa roda, dizendo o contrário do que dizem costumeiramente os amoladores de faca: Isso não pode! Não
é seu direito fazer sofre e humilhar as pessoas que você considera
inferior. É intolerável o uso de qualquer forma de violência na educação
e no cuidado de crianças e adolescentes.
O Projeto de Lei que visa coibir os castigos físicos e humilhantes busca ampliar os direitos de crianças e adolescentes. Por
isso, sua ênfase não é na quantidade ou intensidade da violência
física, mas na sua proposta de dinâmica relacional. A violência física é
um meio, dentre outros, de estabelecer ou manter uma relação de
domínio sobre os considerados inferiores.
Extravagante ou recatada, a violência física sempre cumpre o mesmo papel, subjugar e controlar o outro.
Portanto, são inconciliáveis os métodos violentos com a educação que
tem como compromisso promover o desenvolvimento e a autonomia do
sujeito. O que considero crítico no método educativo que se utiliza da violência física não é a sua intensidade, mas a sua finalidade, que é controlar e manter as ações das crianças e adolescentes por meio da dor e do sofrimento físico.
O que se pretende, enfim, com esse Projeto de Lei não é reduzir a intensidade da violência, mas mudar a forma, o padrão de se educar as novas gerações,
assegurando assim que crianças e adolescentes cresçam e se desenvolvam
livres de práticas punitivas e disciplinares que causam dor,
sofrimento e humilhação. Com a aprovação do projeto, crianças e
adolescentes terão direito a mesma proteção que os adultos têm em
relação à sua integridade física e psicológica.
Maria Aparecida Alves da Silva é Mestre em educação e doutoranda pelo Programa de Pós-graduação Faculdade de Educação - UFG, psicóloga do Núcleo de Prevenção das Violências e Promoção da Saúde - SMS Goiânia e consultora da Ministério da Saúde. Há 13 anos atende na saúde pública pessoas em situação de violência.
fonte: Artigos da Cida
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