"A minha primeira prisão foi no Congresso
estudantil em Ibiúna em outubro de 1968. Eu era vice-presidente do
diretório estudantil da faculdade de economia e estava
no congresso representando a minha faculdade. Fiquei cerca de uma
semana na prisão e não fui torturada. Antes do Ato Institucional número
5, em 13 de dezembro de 1968, os estudantes de classe média não eram
torturados, mas o mesmo não acontecia com os operários. Dois anos mais
tarde encontrei e militei com Jose Barreto, assassinado junto com Carlos
Lamarca, e ele me contou das torturas que sofreu em 1968, quando foi
preso por ter estado no comando da Greve de Osasco.
Por ter
sido presa no Congresso de Ibiúna, eu entrei na clandestinidade lodo
depois do Ato Institucional numero 5, pois sabíamos que com o fim do
habeas corpus e dos direitos que ainda existiam os militares iriam me
perseguir em algum momento. E, efetivamente, alguns meses mais tarde
quando da chamada Operação Rockefeller, mais de 10 mil pessoas foram
presas numa tentativa de preservar o país de qualquer manifestação
contra a chegada de Nelson Rockefeller , então governador de Nova York.
Nessa ocasião, a casa dos meus pais foi invadida por militares armados.
E, meu pai, Dr Miguel Vasconcellos, então diretor do Hospital Pedro
Ernesto no Rio de Janeiro, foi preso e levado para um quartel onde o
interrogaram sobre a minha localização, a qual ele desconhecia. Com ele,
foi levada minha irmã Regina Murat Vasconcellos. Eles foram soltos,
depois de ameaçados.
A minha segunda prisão se dá então em 31 de março de 1971, depois de dois anos e meio de clandestinidade.
A tortura era uma prática da ditadura e nós sabíamos disso pelo relato
dos que tinham sido presos antes. Mas nenhuma descrição seria comparável
ao que eu vim a enfrentar. Não porque tenha sido mais torturada do que
os outros. Mas porque o horror é indescritível.
Sabendo dessa impossibilidade, vou tentar descrevê-lo.
Em março de 1971, eu estava junto com Maria Luiza Garcia Rosa num
quarto que alugávamos num apartamento no Jacarezinho. Eles chegaram de
noite e nem houve condições de esboçar uma reação. Imediatamente fomos
separadas, me jogaram num carro e me enfiaram um capuz. Começaram a me
bater dentro do carro.
Quando cheguei no Doi-Codi, não sabia
onde estava, só fui descobrir mais tarde, que era o quartel do Exercito
localizado na Rua Barão de Mesquita, que existe até hoje. Rapidamente
me levaram para a sala de tortura. Fiquei nua, mas não lembro como a
roupa foi tirada. A brutalidade do que se passa a partir daí confunde um
pouco a minha memória. Lembro como se fossem flashs, sem continuidade.
De um momento para outro, estava nua apanhando no chão. Logo em seguida
me levantaram no pau de arara e começaram com os choques. Amarraram a
ponta de um dos fios no dedo do meu pé enquanto a outra ficava
passeando. Nos seios, na vagina , na boca. Quando começaram a jogar
água, estava desesperada e achei num primeiro momento que era para
aliviar a dor. Logo em seguida os choques recomeçavam muito mais fortes .
Percebi que a água era para aumentar a força dos choques.
Isso
durou horas. Não sei quantas. Mas deve ter se passado mais de dez horas.
De tempos em tempos, me baixavam do pau de arara. Lembro que um médico
entrou e me examinou. Aparentemente fui considerada capaz de resistir,
pois a tortura continuou.
Logo que comecei a apanhar, achei que
não ia resistir e inventei uma história que na minha cabeça me
possibilitaria me suicidar.Nós tínhamos um sistema de ponto - de
encontros - em que se não aparecêssemos em 48 horas, nós seriamos
considerados presos e nossa família seria avisada. Eu queria proteger
meus companheiros e a única coisa que me passava pela cabeça era
agüentar um tempo até eu ter condições de me suicidar, pois assim todos
estariam salvos. Então, disse que eu deveria estar na varanda do
apartamento onde tinham me prendido, e que um companheiro passaria de
carro embaixo do edifício. Eu faria um sinal de que tudo estava bem, e
ele iria me encontrar mais tarde em um determinado lugar. Eu achava que
da varanda do apartamento eu poderia me jogar e tudo estaria terminado.
Mas quando eu saí do pau-de-arara , eu estava paralítica, a minha perna
direita tinha inchado muito (depois foi diagnosticada uma flebite). Eu
não conseguia mexer a perna, estava muito machucada, com febre muito
alta e com os pulsos abertos por causa do pau de arara. Sem poder subir
as escadas do edifício, eles me levaram até o local, mas me deixaram
dentro do carro e me substituíram na varanda por uma pessoa deles com
uma peruca da cor dos meus cabelos. Quando eu percebi o que estava
acontecendo, comecei a ficar desesperada. Sabia que eles não iam pegar
ninguém e que quando voltasse eu não iria resistir. Eu não ia conseguir
me suicidar. Essa foi talvez a pior sensação da minha vida, a sensação
de não poder morrer. Eu chorava igual uma louca dentro do carro e pedia
por favor para eles me matarem.Eles riam. E diziam que eu ia me fuder
se não caísse ninguém.
Eu não tinha muita noção das horas, mas
sabia que, naquele momento, tinha que aguentar pelo menos mais 12 horas
para impedir a prisão dos meus companheiros,. E não sabia como. Aos 22
anos, eu vi que tinha que inventar outra história que justificasse para
mim mesmo o novo horror que se aproximava. Desde o carro, antes de ir
para um encontro onde ninguém foi preso, eu comecei a dizer que a culpa
era deles, que ninguém era idiota de ir num ponto porque não era eu que
estava na varanda. Eu precisava me agarrar a uma história, mesmo que
eles não acreditassem.
Não sei bem o que se passou quando eu voltei.
As lembranças são confusas. Não sei como era possível, mas tudo ficou
pior. Eles estavam histéricos. Sabiam que precisavam extrair alguma
coisa em 48 horas senão perderiam meu contato. Gritavam, me xingavam e
me puseram de novo no pau de arara. Mais espancamento, mais choque, mais
água. E dessa vez entraram as baratas. Puseram baratas passeando pelo
meu corpo. Colocaram uma barata na minha vagina.
Hoje, parece
loucura. Mas um dos torturadores de nome de guerra Gugu, tinha uma caixa
onde ele guardava as baratas amarradas por barbantes. E através do
barbante ele conseguia manipular as baratas no meu corpo.
Eu queria
morrer e não conseguia morrer. Mas nisso praticamente eu já tinha ganho o
tempo necessário para liberar os pontos com a organização. E a Marilena
Vilas Boas, que mais tarde foi barbaramente assassinada, que era com
quem eu tinha os encontros, conseguiu avisar minha família de que eu
tinha sido presa.
Passados esses primeiros dias, eu fui largada no corredor, de capuz. Eu ficava meio desmaiada, meio dormindo.
Até que fui levada para a enfermaria. Na enfermaria, depois de algum
tempo, comecei a tomar antibióticos. Não podia andar, minha perna
direita estava muito inchada e não mexia, meus pulsos estavam feridos,
assim como os seios e os pés. Não podia comer porque tinha levado muito
choque na língua e se engolia alguma coisa, vomitava.
Médicos mais
tarde calcularam que se eu não tivesse começado a ser medicada, eu teria
morrido em poucos dias. Isso é uma questão importante. As
circunstâncias. Com certeza eu fui salva por circunstâncias, não pela
vontade deles. Podíamos morrer a qualquer momento e por isso nos
mantinham incomunicáveis em todo esse período e negavam nossa prisão.
Para eles, que eram donos de nossas vidas e de nossas mortes, seria
apenas mais um "acidente", como tantos que aconteceram.
Na
enfermaria, os médicos que me trataram eram os mesmos que nos
"assistiam " na sala de tortura: Amilcar Lobo e Ricardo Fayal.No dia
seguinte, comecei a ser interrogada por dois representantes da Bahia -
eu tinha vivido clandestina durante um ano em Salvador - o Major
Cinelli, do CIEX e um representante da Aeronáutica. Eles resolveram me
levar para a Bahia. Disseram que iam me tratar lá.
Fui de avião
da FAB para Salvador e levada para o quartel de Barbalho, onde o
medico se apavorou achando que eu ia morrer em suas mãos e fez um
relatório descrevendo em detalhes minha situação e pedindo um
especialista. Lembro que esse médico disse: "Eu vou fazer isso porque
senão você vai morrer nas minhas mãos e eu não tenho nada a ver com
isso". Trouxeram então um médico neurologista da Aeronáutica que me
tratou. Minha perna começou a desinchar. Continuava de cama e sendo
interrogada todos os dias pelo major Cinelli. Mas nesse momento sem
tortura física.
Melhorei, a perna desinchou e fui transferida
para Base Aérea em Salvador. Eu estava com a perna muito fina, sem
controle no pé, a cintura torta, como se eu tivesse tido paralisia
infantil. Achei que as torturas tinham terminado, quando me avisaram que
eu voltaria para o Rio. Quando eles entraram na cela já me puseram o
capuz. Fui levada aos trancos para o avião, e durante todo o trajeto era
ameaçada de ser jogada para fora. Me levantavam da cadeira, me levavam
até um lugar onde deveria ser a porta de emergência do avião e diziam
que iam abrir. Voltavam a me sentar para recomeçar tudo. Em algum
momento, me perguntaram pelo "Paulo" , nome de guerra do Stuart Angel
Jones, e eu percebi que ele tinha caído. Depois, no Rio nunca mais
perguntaram por ele. Stuart tinha sido assassinado. Só soube depois.
Eles se comportavam o tempo todo como se estivessem disputando um
campeonato. E o que estava em jogo podia ser uma prisão, a morte de
alguém da oposição considerado importante, o fato de alguém ter falado.
Assim, o pessoal do Dói-Codi disputava com a Aeronáutica, que disputava
com a polícia... O pessoal do Rio disputava com a Bahia, etc.... Eles
nos disputavam como se fossemos troféus, verdadeiros animais de caça.
Quando voltei ao DOi-Codi, de Salvador, a tortura seria um pouco
diferente. Em 1971, eles já conheciam bem o funcionamento das
organizações clandestinas E a tortura era dirigida para o seu
aniquilamento. Assim, eles sabiam do esquema de pontos que tínhamos e a
tortura quando éramos presos, era violenta e brutal para que
entregássemos os encontros com nossos companheiros o mais rápido
possível. Depois, eles sabiam que podiam usar o tempo a favor deles para
conseguir informações mais estruturais. Um dos torturadores, de nome de
guerra Nagib, me disse um dia que para eles nós éramos como
cachorrinhos de Pavlov. O choque no início tinha de ser de alta
voltagem. Mas depois, eles podiam dar choques pequenos que a nossa
memória era do choque de alta voltagem. Nos já estaríamos nas mãos
deles.
Acho isso muito importante porque demonstra também que
essa equipe de torturadores estudava os métodos que eles
eufemisticamente chamavam de "técnica de interrogatório". Não era
simplesmente uma explosão de um sádico de plantão.Num segundo momento
então, a tortura era progressiva, feita de idas e vindas, de ameaças e
da nossa certeza, permanentemente alimentada por eles, que tudo poderia
recomeçar a qualquer momento. O objetivo era, pouco a pouco, nos anular,
como pessoas e como militantes.
Foi nesse quadro, na volta,
que o próprio Nagib, fez o que ele chamava de tortura sexual cientifica.
Eu ficava nua, com um capuz na cabeça, uma corda enrolada do pescoço
passando pelas costas até as mãos, que estavam amarradas atrás da
cintura. Enquanto o torturador ficava mexendo nos meios seios, na minha
vagina, penetrando com o dedo na vagina, eu ficava impossibilitada de me
defender, pois se eu movimentasse meus braços para me proteger eu me
enforcava e instintivamente voltava atrás. Ou seja, eles inventaram um
método tão perverso em que aparentemente nós não reagíamos, como se
fôssemos cumplices de nossa dor. Isso durava horas ou noites, não sei
bem.
Era considerado um método de aniquilamento progressivo. E foi
realmente o período em que eu mais me senti desestruturada, mais do que
em toda a loucura dos primeiros dias Porque você já sabe o que é a
tortura, e ela parece que nunca terá fim.Nessa época, a rotina estava
implantada. Eu ficava numa cela - num período fiquei com uma menina do
Paraná chamada Ruth - e era levada repetidamente para a sala de
tortura, para novos interrogatórios.
Acho que a essas alturas
eu já estava ha dois meses na prisão, quando meu advogado, Dr Tecio
Lins e Silva, conseguiu que eu fosse apresentada na Auditoria da
Marinha, onde corria um processo contra mim.
Desde o primeiro dia,
quando Marilena avisou minha mãe, minha família e meu advogado, tentavam
desesperadamente me encontrar. Eles sabiam que se eu fosse levada na
auditoria, eu estaria salva pois teria sido apresentada e seria muito
difícil eles me matarem. Por isso, usaram de todos os subterfúgios e
procedimentos legais para conseguirem que eu fosse apresentada. O meu
advogado entrou com um pedido na Auditoria afirmando que eu tinha sido
presa. A auditoria mandou uma ordem para o Quartel da PE.
Essas contradições existiam porque em meio ao horror a ditadura
brasileira sempre tentou manter justificativas legais. E nós não
estávamos sendo torturadas numa casa clandestina, mas num quartel do
exército.
E assim um dia mandaram eu me vestir - nós usávamos um
macacão na prisão - e eu fui levada por um grupo de soldados da PE para
a Auditoria da Marinha.
Quando eu cheguei na auditoria eu não
andava, a minha perna continuava atrofiada e eu tinha hematomas e
ferimentos pelo corpo. Me levaram para uma sala onde estavam meus pais e
meu advogado. Sempre rodeada pelos soldados da PE, eu pedi por favor
para que eles tentassem me tirar do Doi-Codi e me levassem para o
Hospital Militar. Eu sabia também que aquele momento era a única chance
que eu teria de denunciar as torturas com uma prova real. Eu era a prova
real da tortura. E apesar do medo imenso que sentia eu denunciei que
estava naquele estado por causa das torturas, num depoimento
extremamente emocionado.
Lembro- e eu tinha apenas 22 anos -
que quando entrei na sala todos os juízes militares baixaram a cabeça.
Não tiveram a coragem de me encarar. Como também não tiveram a coragem -
apesar de todos os esforços do meu advogado - de me mandarem para o
Hospital Militar e, mais uma vez, eu fui levada para o Doi-Codi. Eu
tremia muito pois imaginava o que me esperava depois de ter denunciado
tortura. Eu disse para o meu advogado: Eles vão me matar'. A impotência
estampada nos olhos dele era o retrato desse país.
Mas eles não
podiam mais me matar porque eu já estava oficialmente presa, o que no
entanto não tinha a menor importância para mim. O importante era que eu
sabia que ia voltar a ser torturada e que eles deveriam estar furiosos
com o meu depoimento. E é impressionante a capacidade deles de
inventarem sempre alguma coisa diferente. Alguma coisa que vai te deixar
pior ainda.
Quando cheguei na sala de tortura, estavam todos
juntos e enlouquecidos. (Releio esse depoimento e vejo que a todo
momento eu digo que foi a pior coisa que vivi na vida.) Bom, esse
momento foi de novo o pior momento que já vivi na vida. Eles me fizeram
representar o que eu tinha feito na auditoria, como se tivesse sido uma
representação, uma mentira, uma palhaçada. "Ah, agora faz mais cara de
choro, não está suficiente, você fez mais cara de choro do que essa lá',
'- Manca mais, você mancou mais lá filha da puta'. E eu fiz tudo o que
eles mandaram, eu fiz tudo que eles mandaram. A sensação era que eu
tinha perdido inteiramente minha identidade. Quando a sua dor é
transformada em piada com a sua ajuda é como se nada mais tivesse
sentido.
Depois disso, eu fiquei mais algum tempo no Doi-Codi,
não sei precisar quanto. Sei que fui presa em 31 de março e que quase
três meses depois fui finalmente mandada para a Vila Militar, onde
passei a ser legalmente presa, com visita de família e advogado. De todo
esse período, de todo esse horror, eu vivi também alguns momentos de
esperança. No quartel da Barão de Mesquita, além das equipes de
torturadores, encontrávamos soldados da Polícia do Exército em serviço
militar. Era um quartel, com um funcionamento normal de quartel. E a
maior parte dos soldados para mostrar serviço diante dos oficiais
participavam da brutalidade. Ou nos empurrando, ou, por exemplo, dizendo
que tinha um degrau a mais quando subíamos uma escada de capuz fazendo
com que caíssemos. Pequenos poderes, muitos abusos. Mas nem todos se
comportaram assim. Dois soldados são inesquecíveis por terem conseguido
manter sua humanidade. E eu queria lembrá-los hoje.
Eu queria
lembrá-los aqui, mesmo sem saber seus nomes, porque o que estamos
fazendo é um exercício de humanidade. Um soldado se ofereceu para levar
um bilhete para minha família. E levou. O outro foi o enfermeiro que na
minha primeira noite na enfermaria passou todo o tempo acordado
colocando panos quentes para tentar amenizar a dor da minha perna,
Lembro que ele só repetia. "Quando eu terminar o serviço militar, quero
esquecer tudo isso."
Mas nós não podemos esquecer. E por isso estamos aqui hoje.
Estava já há cerca de dois meses na Vila Militar, quando em final de
agosto, fui levada de novo para o Doi-Codi. Essa possibilidade não
passava pela minha cabeça. Tinha me convencido que tudo aquilo acabara.
Mas com o assassinato da Yara Yalvberg e a perseguição ao Lamarca e ao
Zequinha, resolveram que eu deveria ser interrogada de novo sobre a
Bahia.
Quando um sargento me disse, na Vila Militar, que eu
iria ser levada para o Doi-Codi entrei em desespero, e de novo tentei
suicídio. Era inadmissível voltar a viver tudo aquilo. Mas fui impedida
pela minha companheira de cela, minha querida Abigail Paranhos, que
perdemos para o câncer alguns anos atrás. Estava tão desesperada que me
deram uma injeção e fui levada quase desmaiada para a Barão de
Mesquita.
Lá tudo estava mudado. As celas tinham cama e lençol e
os aparelhos de tortura foram substituídos por celas com controle de
som e de temperatura, as chamadas geladeiras. Os presos eram colocados
sem poder dormir, sem comer e em temperaturas baixíssimas. Fui de novo
interrogada pelo Major Cinelli. Eu não estava entendendo nada do que
acontecia.
Hoje, me parece que o Doi-Codi da Barão de Mesquita,
a partir desse momento, foi reservado para presos que passariam por
esse "interrogatório cientifico". Ao mesmo tempo, os militantes das
organizações armadas considerados chave foram sumariamente condenados a
morte. Não iam mais para o Doi-Codi. Iam ser torturados e assassinados
em outros lugares, como a Casa da Morte de Petrópolis, cuja única
sobrevivente foi Ines Etiene Romeu.
Foi assim com Sérgio Furtado,
com Paulo Ribeiro Bastos, com Fernando Santa Cruz e muitos outros
companheiros que constam da lista de "desaparecidos". A pena de morte
foi decretada também para os combatentes urbanos nesse período, assim
como foi para os militantes da Guerrilha do Araguaia. Não posso provar
que houve uma decisão de matar os poucos sobreviventes das organizações
armadas, mas é o que deduzo do que vivi nessa época.
O Nagib,
que gostava de discursar, de me explicar as técnicas e os objetivos
deles, me disse uma vez que depois de acabarem conosco, que no fundo
éramos apenas garotos impertinentes, eles iam terminar com quem
efetivamente importava, com aqueles que tinham feito nossas cabeças. E
que depois de aniquilar as organizações armadas, iriam aniquilar o
Partido Comunista Brasileiro. Efetivamente, alguns anos depois a direção
do PCB foi assassinada.
É terrível você olhar para trás e
descobrir que no seu país utilizou-se de métodos cruéis e criminosos na
luta política. Não se tratava apenas de aniquilar quem estava se
defendendo de armas na mão, mas de aniquilar toda e qualquer visão
contrária à deles. Era um método de manutenção de um poder autoritário.
Uma vez na enfermaria, quando questionei o Amilcar Lobo de como um
médico e psicanalista se permitia àquele papel, ele me disse que se não
fosse ele seria outro, que ele era apenas um membro de uma engrenagem.
Eu me lembro que respondi: muitos disseram isso em Nuremberg.
Não estamos em Nuremberg. 43 anos se passaram desses acontecimentos.
Restaram pequenas cicatrizes no meu corpo, um problema de sensibilidade
na minha perna direta e essa história. Uma história que compartilho com
vocês não por desejo de vingança ou masoquismo, mas porque acredito que a
única maneira de fortalecemos a democracia nesse país e conhecendo
nosso passado. A única maneira de combater aqueles que ainda torturam
por esse país afora, é mostrar que esse é - e sempre foi - um crime de
lesa-humanidade.
Depois de 3 anos e meio de prisão, fui solta. É
verdade que depois de tudo isso, reconstruí minha vida. Com a ajuda de
mina família, de meus amigos e de um processo de análise que durou 25
anos, Mas reconstruir não significa esquecer. Reconstruir significa
saber conviver com esses fatos lutando para que não se repitam jamais. O
horror à violência e ao autoritarismo passou a fazer parte de mim.
Há dois anos, pedi licença ao Exército para filmar as celas onde estive
presa. O pedido foi negado. Sem explicações. Como se pode avançar em
direção ao futuro se não se pode reconstruir o passado? Até quando vão
esconder nossa história?
Milhares de pessoas foram presas e
torturadas no Rio de Janeiro Queria pedir à Comissão que comece uma
campanha para que todos aqueles que foram presos mandem um depoimento.
Precisamos saber o que aconteceu. Nome, data , que torturas sofreu e
quem foram os responsáveis.
Na minha época do Doi-Codi, os
torturadores usavam nome de guerra e tinham seus nomes verdadeiros
tampados por um esparadrapo na camisa. Mas posteriormente, consegui
identificar alguns deles, que são: Major Demiurgo - então chefe do
Doi-Codi e que mantinha contato com nossas famílias; Tenente Armando
Avolio Filho - de nome de guerra Apolo; e Riscala Corbage, o Nagib.
Os outros não consegui localizar. E creio que passados 43 anos será
quase impossível o reconhecimento. Mas outros torturados, e foram
milhares, com certeza terão outras informações a dar.
Espero
que a Comissão possa ouvir os que ainda estão vivos e a todos aqueles
que foram reconhecidos para que possamos revelar por inteiro esse
período."
no Facebook por Marcia de Almeida
Leia também: Os crimes da ditadura têm que ser conhecidos
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