4 de janeiro de 2011

A regulação da mídia nos outros países e no Brasil


Desde 2009, quando o tema da regulação e do controle social da mídia ganhou espaço no debate público nacional com a realização da 1ª Conferência Nacional de Comunicação (Confecom), setores da imprensa dedicam espaço considerável para bradar que a liberdade de expressão está ameaçada.

Foi essa a tônica da cobertura das resoluções da própria conferência; do lançamento do Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3); e, mais recentemente, da polêmica gerada em torno da criação de Conselhos Estaduais de Comunicação e do seminário promovido no início de novembro pelo governo federal para discutir experiências internacionais de marcos regulatórios para as comunicações.

Todos os debates sérios revelam que nos países em que houve iniciativas de regular o funcionamento dos meios de comunicação – especialmente os que são objeto de concessão, como as emissoras de rádio e TV –, longe de ameaça à liberdade de expressão, as medidas asseguraram uma mídia mais plural e com maior diversidade.


A legislação brasileira, da década de 1960, além de pôr o país em situação de atraso em comparação ao que se tem na Europa e nas Américas do Norte e do Sul, vem se mostrando um entrave para a consolidação da democracia.

Enquanto o mundo todo já se preocupa em como lidar com os desafios da convergência tecnológica – com computadores, celulares, internet e outras ferramentas incorporadas ao universo de informação –, o Brasil ainda não resolveu sequer problemas como o do monopólio nos meios de comunicação nas mãos de grupos empresariais, da propriedade de emissoras por políticos e da falta de espaço para promoção e veiculação de programas regionais e produções independentes.

A própria Constituição prevê formas de participação da sociedade no controle das atividades relacionadas à administração de áreas ligadas aos direitos sociais, como educação, saúde e cultura. “A comunicação é mais uma delas. Portanto, o controle social deveria ser garantido. O problema é que a grande mídia satanizou essa expressão, que na verdade diz respeito a um serviço que afeta a vida de todos”, afirma o jornalista e sociólogo Venício Lima.

Para as grandes empresas de comunicação, “quanto menos legislação melhor”, como já afirmou Roberto Civita, presidente do grupo Abril, durante seminário organizado pelo Instituto Millenium. A fala dos empresários da comunicação no Brasil vai na contramão do que acontece em países democráticos de todo o mundo.

O canadense Toby Mendel, consultor da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), afirma que o Estado não pode simplesmente deixar o mercado agir. “A liberdade de expressão vai além do direito do emissor de dizer o que pensa. É também direito do receptor, do telespectador, do leitor receber uma variedade de informações e de pontos de vista. Se a propriedade dos meios de comunicação não é regulada, isso pode até ser aceitável do ponto de vista do emissor, mas o direito do receptor de receber ideias plurais começa a ser reduzido”, observa.

De acordo com especialistas da França, Inglaterra, Portugal, Espanha, Estados Unidos e Argentina que vieram ao Brasil para o seminário internacional sobre marco regulatório, a criação de regras para o funcionamento das empresas de comunicação e para a exibição de conteúdos no rádio e na TV – e agora nos celulares e computadores pessoais – é fundamental para a garantia da pluralidade e do respeito aos direitos humanos, pilares de qualquer sociedade democrática.

Não está em questão, portanto, nenhuma forma de censura, porque não há nesses países a ideia de aprovação prévia para veiculação de determinado conteúdo. O que existe são regras para a promoção da diversidade, da cultura nacional e regional e da imparcialidade jornalística; para a proteção das crianças e adolescentes e da privacidade dos indivíduos; para o combate ao chamado “discurso do ódio” e à injúria e difamação.

A maioria desses mecanismos está indicada pela Constituição brasileira. Mas até hoje não se tornou lei aplicável porque o setor da radiodifusão, com o apoio da mídia impressa, bloqueia o debate público sobre a questão. Derrubar esse bloqueio é o que querem os movimentos sociais e o que sinaliza agora o governo federal. “A comunicação diz respeito à cidadania, à participação política e à produção cultural, e por isso a sociedade deve participar diretamente”, afirma o ministro Franklin Martins, da Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República.

Regulação democrática


Para atender a esses princípios, a União Europeia discute uma regulamentação das comunicações comum para os países que integram o bloco desde o final dos anos 1980. Entre 2005 e 2007, foi feita a última atualização das regras. Entre elas, está a obrigação de as emissoras de rádio e TV de todos os países veicularem produção independente e conteúdo europeu. A diretiva europeia também define para todos limitações na veiculação de publicidade. O tempo máximo de propaganda permitido é de 20% da grade de programação – no Brasil a lei prevê 25%. Há também restrições a publicidade de tabaco, medicamentos, álcool e comida gordurosa. Anúncios e conteúdos considerados violadores de direitos humanos podem sofrer sanções.

Portugal fez uma recente atualização da sua lei de audiovisual. O país possui uma vasta regulamentação para a veiculação de conteúdo, que inclui a definição de horários para proteção de crianças; cotas para veiculação de músicas portuguesas no rádio; direito de resposta; proteção de grupos minoritários, para evitar manifestações de preconceito regional, de gênero e étnico-racial; e promoção do pluralismo e da diversidade. “A abordagem de mercado olha a população como consumidores. A abordagem para o regulador de conteúdos é uma abordagem de cidadania”, compara José Alberto Azeredo Lopes, presidente da Entidade Reguladora para a Comunicação Social.

Na França, o Conselho Superior de Audiovisual zela pelo pluralismo político no rádio e na TV. O tempo de exposição dos blocos partidários é monitorado para que tenham um espaço equilibrado. “A pluralidade na emissão é o que garante a riqueza e a prevalência do interesse público na nossa televisão”, afirma Emmanuel Gabla, diretor adjunto do conselho.

Os canais franceses têm ainda a obrigação de respeitar rigorosamente os direitos humanos. “Punimos um canal que transmitia um reality show que atentava contra a dignidade humana. Colocaram no ar uma mulher que tinha de andar de coleira no chão, como se fosse uma cachorra”, exemplificou.
“Quando abrimos concessões para novos canais na TV digital, o critério era o tipo de conteúdo que veiculariam, buscando ampliar o pluralismo. Tínhamos seis canais abertos e agora temos 19 digitais e uma centena de canais regionais. Aumentou muito o apoio à pluralidade e à identidade cultural dos franceses”, conta Gabla.
“Estamos falando de concessões públicas. Nem sempre agradamos a toda a mídia, mas as regras que estabelecemos internacionalmente já são aceitas como algo necessário para a democracia”, avalia Vincent Edward Affleck, diretor do órgão regulador das comunicações na Inglaterra.

Limites à propriedade

O princípio da garantia da pluralidade e diversidade move as regras que impõem limites à propriedade dos meios de comunicação nesses países. Para enfrentar esse problema, a Lei de Serviços de Comunicação Audiovisual, aprovada recentemente na Argentina – e com muitas críticas dos grandes meios de comunicação do país –, impôs limites à concentração da propriedade da mídia.

“Chegamos a um nível em que a questão não era apenas econômica; criou-se um oligopólio totalmente incompatível com uma sociedade democrática”, conta Gustavo Bulla, da Autoridade Federal de Serviços de Comunicação Audiovisual da Argentina.

Um projeto de lei foi posto em discussão em 2008, enviado ao Congresso em 2009, e depois de muito embate, inclusive na Justiça, entrou em vigor. Entre as regras para propriedade estão o limite de dez outorgas de rádio ou TV aberta. Na TV a cabo, nenhuma empresa pode deter o controle de mais de 35% dos assinantes. Criou-se também uma reserva de um terço do espectro da TV aberta para as emissoras privadas sem fins lucrativos (comunitárias e universitárias).
“O espectro é um bem público, escasso. Mas muitas vezes as empresas têm a impressão de que a licença pública é sua propriedade”, analisa José Amado da Silva, presidente do Conselho de Administração da Anacom, a agência reguladora da infraestrutura em Portugal.

Portanto, as reais ameaças à liberdade de expressão no Brasil não vêm das iniciativas de regulação da mídia, e sim da estrutura de controle desse setor por poucos grupos ou pessoas. O sistema de concessões e renovação de outorgas de rádio e TV no Brasil, por exemplo, é um dos principais mecanismos de concentração da propriedade, de ausência da pluralidade de vozes na mídia e de manutenção de interesses privados, disfarçados de públicos.

Um ano depois da 1ª Confecom, o governo federal deu um passo significativo para transformar essa realidade. A gestão Dilma Rousseff sinaliza tratar como prioritárias as mudanças na comunicação. “Estou convencido de que a área de comunicação terá, no próximo governo, o mesmo tratamento que teve a energia no governo Lula. Algo estratégico para o crescimento. Ou se produz um novo marco regulatório, ou vamos perder o bonde. E, se não houver o debate, quem vai regular é o mercado. E, quando o mercado regula, quem ganha é o mais forte”, afirma o ministro Franklin Martins.

A pretensão do governo é fazer as mudanças no marco regulatório através de um processo público, aberto e transparente. Até o final da gestão Lula, um anteprojeto de lei, elaborado por um grupo de trabalho interministerial, será entregue à equipe da presidente eleita, que decidirá quando e como apresentá-lo ao Congresso. “É necessário regular, criar políticas públicas e gerar um ambiente para que a sociedade se sinta não só usuária dos serviços de comunicação, mas cidadã. Se formos capazes de entender isso, teremos mais opiniões se expressando no debate público”, diz o ministro.

Em paralelo, corre no Supremo Tribunal Federal uma proposta de ação direta de inconstitucionalidade por omissão do Congresso Nacional. Elaborada pelo jurista Fábio KonderComparato, professor emérito da Faculdade de Direito da USP, e protocolada pelo PSOL, a ação pede que a Justiça obrigue o Parlamento a regulamentar os artigos da Constituição que tratam da comunicação social. Tudo indica, assim, que 2011 será um ano de muita movimentação para aqueles que lutam pelo direito a uma comunicação democrática no Brasil. Que venham as mudanças.
 Por Bia Barbosa no Rede Brasil Atual

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